quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A ABERTURA DOS PORTOS

O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira

Parecer sobre a liberdade de comércio de tecidos

Carta de Manoel [Gonçalves] de Carvalho enviada ao conselheiro da Real Junta do Comércio, Manoel Moreira de Figueiredo, dando seu parecer sobre dois parágrafos da lei de 4 de fevereiro de 1811. Carvalho comenta ser justa a proibição estabelecida pela lei sobre a entrada de tecidos coloridos nas alfândegas do Brasil provenientes dos portos da Ásia que não fossem possessões portuguesas. No entanto, ressalta que o legislador não pensou no tratado realizado com a Inglaterra, no qual se permitia a livre entrada em "abundância" de tecidos "melhores e mais baratos" nas alfândegas.

Conjunto documental: Junta do Comércio. Falências comerciais
Notação: caixa 363, pct. 02
Data-limite: 1820-1835
Título do fundo ou coleção: Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação
Código do fundo: 7X
Argumento de pesquisa: abertura dos portos
Data do documento: 26 de março de 1821
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

Ilustríssimo Senhor

Recebendo o ofício de Vossa Senhoria para dar ao Tribunal da Real Junta do Comércio[1] o meu parecer sobre a revogação, ou conservação da Legislação proibitiva que contém os §§ 32 e 34 da Lei de 4 de fevereiro de 1811[2], relativo ao comércio das fazendas pintadas, ou estampadas em cores de Bengala, e Costa do Coromandel[3].
Devo informar a Sua Majestade que acho a Lei muito justa para a conservação das possessões de Goa, Diu, e Damão[4]; porquanto faltando ali a navegação de Portugal, e Brasil; decerto enfraqueceram as ditas possessões; embora lembre, que pagando-se os direitos[5] de Goa no Brasil, importam em maior quantia, pela diferença da [Pauta]: visto que indo os navios a Goa, chamam ali o comércio central, acima o de cabotagem[6], e agricultura, e poderão para [ilegível] levantar-se fábricas[7] em alguns dos ditos portos. Porém o legislador não se lembrou do Tratado de Inglaterra[8], de donde tem vindo quantidade de fazendas pintadas a imitação das do Malabar[9], as quais além de mais baratas parece [sic] melhores, e a grande abundância que tem entrado no Brasil, tem causado o empate das nossas. Sendo pois livre aos ingleses conduzi-las de Inglaterra; também o deve ser aos nossos navios trazê-la [sic] de Bengala, ou de donde mais lhe convier.
É o que posso informar a Sua Majestade em resposta do ofício de Vossa Senhoria que Deus Guarde muitos anos.
Rio de Janeiro 26 de março de 1821
Ilustríssimo Senhor Manoel Moreira de Figueiredo

De Vossa Senhoria muito venerador e criado
Manoel [Gonçalves] de Carvalho


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[1] Em 23 de agosto de 1808, em conseqüência da abertura dos portos ao comércio estrangeiro, foi estabelecida no Brasil a Real Junta de Comércio, que substituíra a Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro e estendera sua jurisdição a todas as capitanias. Em Portugal a Real Junta havia sido criada pelo decreto de 30 de setembro de 1755, e tornada Tribunal Régio durante o reinado de d. Maria I. Alguns dos papéis da Junta, que teve como primeiro presidente o Conde de Aguiar, Fernando José de Portugal e Castro, que tomou posse em 18 de Maio de 1809, eram: o de matricular os negociantes de grosso trato e seus caixeiros, regular a instalação de manufaturas e fábricas, cuidar do registro de patentes de invenções. Desempenhou também importante papel nos litígios entre negociantes, nas dissoluções de sociedades mercantis, na administração de bens de negociantes falecidos ou de firma falidas ou em concordata, assim como o papel de garantir aos credores a quitação das dívidas, quando algum desses casos ocorresse.
[2] O alvará de 4 de fevereiro de 1811 tinha como objetivo principal eliminar as barreiras que impediam o comércio entre os portos "de Portugal, Brasil, Ilhas das Açores, Madeira, Ilhas de Cabo Verde, portos da Costa da África Ocidental e Ilhas adjacentes", pertencentes a Real Coroa, "abolindo todas as restrições", em favor dos domínios da Coroa portuguesa. O alvará era composto de 40 artigos que definiam as medidas que deveriam ser adotadas para fortalecer o comércio entre os portos portugueses, como a diminuição de taxas para as mercadorias produzidas nos domínios portugueses, face às mercadorias estrangeiras, e a isenção, em alguns casos, de direitos sobre gêneros transportados em navios de bandeira portuguesa, de acordo com o parágrafo 32: "os gêneros que forem importados em navios portugueses para os portos do reino e seus domínios, pagarão 16% de entrada" e, os navios que "forem carregar ou despachar os gêneros" em portos do reino e já "tiverem pago os direitos de entrada e saída gozarão de isenções, mediante a apresentação das certidões". Esta lei buscava fortalecer as manufaturas do reino, como fica claro no parágrafo 34, que proibia a entrada nos portos do reino, das fazendas "com cores, sejam tecidas, pintadas ou estampadas, a excepção das que vierem despachadas pelas Alfândegas de Goa, Diu e Damão e mais portos dos meus domínios além do Cabo da Boa Esperança". Portugal desconsiderava, por meio deste alvará, o Tratado de Navegação e Comércio que havia assinado com a Inglaterra em fevereiro de 1810, que previa a livre circulação das mercadorias inglesas, inclusive os tecidos que eram "melhores e mais baratos", como forma de compensar os comerciantes portugueses de seus domínios pelas perdas que tiveram com o predomínio inglês nos portos do Brasil estabelecido a partir daquele acordo.
[3] Bengala, às margens do Golfo de mesmo nome na costa oriental do atual território da Índia, ocupava a região onde hoje se situa o estado de Bengala (na Índia) e Bangladesh - sua principal cidade Calcutá. Região de ocupação inglesa desde o século XVII, foi considerada um importante entreposto comercial e de produção para fornecimento de gêneros para o Império inglês e para as outras regiões da Índia, neste caso, sobretudo de arroz, mas também de tecidos de algodão, trigo, drogas, especiarias, açúcar e manteiga. A costa do Coromandel compreende a costa oriental da Índia, onde grande parte de suas cidades mais importantes esteve sob domínio inglês. A maior parcela da produção desta região até o século XVIII e início do XIX era de arroz (base da alimentação hindu), para provimento principalmente interno, sobretudo da costa do Malabar, e de outros gêneros, como óleo de gergelim, especiarias e produtos da indústria têxtil - a serem exportados para a Inglaterra. Uma quantidade significativa do arroz consumido no Império português provinha da costa do Coromandel, importado através de Goa, capital do Estado português na Índia.
[4] Goa, Diu e Damão foram as maiores cidades do Estado português da Índia, grandes centros comerciais e pólos receptores de gêneros e matéria-prima das outras regiões portuguesas, a serem redistribuídos pelo Império Português, embora geograficamente dispersas. Embora os portugueses tenham se espalhado pela costa da Índia, as três regiões que permaneceram pontos ativos do Império português até o século XX (reconquistadas em 1961) foram Diu, Damão e Goa. Esta última, a maior dessas cidades, situadas na costa do Malabar, foi desde o século XVI a sede do Estado português da Índia. Conquistada em 1510 por Afonso de Albuquerque por ser a cidade mais estratégica da costa oeste, cercada de áreas de produção agrícola, recebia a maior quantidade de navios e cargas de outros pontos da península e que proporcionava aos portugueses o controle de comércio do oceano índico. Goa foi um dos vértices do comércio do Império português - os outros sendo Luanda, Lisboa, Salvador e Rio de Janeiro, e embora o comércio com as possessões portuguesas na Índia tivesse entrado em decadência a partir do século XVIII (devido aos grandes gastos com guerras para mantê-las e ao contrabando, que diminuía consideravelmente os lucros da Coroa), a cidade permaneceu o ponto forte de Portugal no índico. Ao longo do período colonial, os navios carregados de tecidos e outros produtos "finos" (porcelanas, especiarias) da Índia deixavam os portos de Goa em direção a Luanda, e depois de uma escala em Salvador, iam para Lisboa, onde chegavam praticamente descarregados. A maior parte desses tecidos acabava vendida diretamente para os comerciantes destas cidades (o que levou a aumento de impostos e a proibição da escala no Brasil). Depois da abertura dos portos do Brasil em 1808, o comércio com Lisboa enfraqueceu mais ainda, já que os navios eram diretamente direcionados para a África e depois para o Rio de Janeiro, de onde seriam redistribuídos para o restante do Império. Diu e Damão, localizadas respectivamente na costa de Guzerate e no golfo de Cambaia (ambos parte da região do Guzerate), mais ao norte da costa ocidental, foram peças chave, desde o século XVI, no fornecimento de gêneros para o comércio português, sobretudo de tecidos de algodão, os mais finos reservados a serem mandados a Lisboa por Goa, e os mais grosseiros a serem exportados para Moçambique, em troca de marfim, âmbar, ouro e escravos (entre outros).
[5] Direitos, de forma geral, se referem aos impostos pagos nas alfândegas do Império português, compostos principalmente por direitos de entrada - tributos cobrados sobre os gêneros importados - e direitos de saída, tarifas sobre os gêneros coloniais a serem exportados para outras nações. Antes da carta de 28 de janeiro de 1808, que determinava a abertura dos portos do Brasil às nações amigas de Portugal, os direitos não freqüentavam muito a pauta de discussões da colônia, limitada a seu comércio exclusivo oficial com a metrópole - salvo algumas exceções e o contínuo contrabando. Em virtude da transferência da sede do governo português para o Rio de Janeiro e do acordo estabelecido com a Inglaterra, que havia escoltado a esquadra portuguesa em troca de abertura comercial com o Brasil, para aliviar o escoamento de sua produção, limitado pelo bloqueio continental imposto por Napoleão à Europa, os portos brasileiros passam a ser freqüentados por outras nações estrangeiras, e não somente Portugal, que impõe a instituição de novos valores para os direitos a serem pagos nas alfândegas do Brasil. A carta de 28 de janeiro institui os direitos de 24% a serem cobrados sobre os produtos estrangeiros e de 16% sobre os produtos portugueses. O decreto seguinte de 11 de junho do mesmo ano diminui em 8% os impostos sobre os produtos de Portugal e dá 5% de abatimento para os produtos estrangeiros transportados em navios portugueses. O tratado de comércio e navegação com a Inglaterra de 1810 reduziu para 15% a tarifa alfandegária sobre produtos ingleses - favorecendo este país em relação a outros e até mesmo a Portugal, que pagava mais direitos. Em fevereiro de 1811, para favorecer o comércio com as possessões portuguesas na África e, sobretudo, na Ásia, uma nova lei determinava que as mercadorias vindas destes continentes, especialmente de Goa, Diu e Damão, pagariam metade dos direitos de entrada (de 16%) quando transportadas em navios portugueses -protegendo principalmente a produção têxtil dos territórios portugueses nas "índias", tornando-as competitiva com as fazendas inglesas. Próximo ao final do período joanino no Brasil, sobretudo depois da coroação acontecida no Rio de Janeiro em 1818 e o não-retorno da Corte, portugueses cobram e protestam contra a situação de inferioridade em que se encontrava a metrópole, no que foram atendidos com uma nova lei que reduziu mais os direitos de entrada de produtos portugueses, e aumentou também os entraves dos produtos estrangeiros, visando a melhorar o comércio português e diminuir o domínio inglês nos postos do Brasil.
[6] O comércio de cabotagem é realizado por navegação costeira. No período em questão, barcos de pequeno porte transportavam gêneros de núcleos de produção distantes para os principais portos do país (São Luís, Belém, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) para serem embarcados para a metrópole. Em contrapartida recebiam produtos importados da Europa, Oriente e escravos da África. Cada um destes portos principais tinha uma área de influência e mantinha contato com outros. O porto do Rio de Janeiro, por exemplo, recebia barcos de lugares como o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Espírito Santo (entre outros) e tinha contato com os do Nordeste. Este porto, ao longo do século XVIII, foi o que recebeu maior quantidade de embarcações de cabotagem. Alguns dos principais produtos que chegavam ao porto do Rio de Janeiro para embarque para Portugal eram: açúcar, aguardente, arroz, carne seca, farinha de mandioca, feijão, toucinho, tabaco, madeiras, peixe, mate, queijos, tijolos e telhas, e algodão. Entre os produtos mais enviados estavam: sal, produtos europeus diversos, entre eles, vinhos, azeites e tecidos, e escravos.
[7] O termo fábricas neste documento designa a produção manufatureira, e não exatamente o estabelecimento ou edifício onde esta se realiza. Feita esta primeira distinção, operaremos com o termo manufatura, que descreve mais apropriadamente a incipiente indústria do Brasil. Ao longo do período colonial verifica-se a presença de pequena atividade manufatureira (de caráter doméstico e artesanal), muito devido à repressão operada pela Coroa portuguesa por este tipo de prática ferir a estrutura do sistema colonial e a lógica mercantilista. Essa repressão culminou com a assinatura do alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibiu a atividade manufatureira no Brasil, à exceção da produção de tecidos grosseiros de algodão, que serviam para ensacar gêneros agrícolas e para vestuário dos escravos. Somente depois da transferência da Corte e da sede do Império português para o Brasil em 1808, por meio do alvará de 1º de abril do mesmo ano, o príncipe regente revogou a lei de 1785 e, não apenas autorizou como passou a incentivar a instalação de fábricas no Brasil, concedendo isenção de direitos de importação de matérias-primas e subsídios para a construção das primeiras manufaturas, sobretudo no setor têxtil e de ferro. Ainda assim, boa parte das manufaturas criadas não vingaria, entre as razões principais para este fracasso, a impossibilidade das pequenas fábricas, sem mão-de-obra especializada e sem uma verdadeira organização fabril, de competir com as importações inglesas, mais baratas e de qualidade muito superior, preferidas pela maioria da população em condições de consumir. Sem capital para investimento em melhorias e sem um mercado consumidor interno, a maior parte delas acabou falindo. Dentre as manufaturas que mais se destacaram ao longo do período colonial podemos citar a construção naval, favorecida pela grande oferta de madeiras de boa qualidade proporcionada pela colônia; a produção de têxteis, principalmente dos tecidos grossos de algodão para consumo interno, atividade doméstica e feminina, muito disseminada pelo Brasil (sobretudo em Minas Gerais) e que constituía a fonte de renda para muitos colonos; e atividades artesanais diversas, urbanas e rurais, voltada para a produção de artigos necessários à vida cotidiana, como móveis, cerâmica, instrumentos de ferro, sapatos, ourivesaria, entre outros, exercidas sobretudo por escravos de ganho e libertos.
[8] Tratado de Comércio e Navegação firmado em 19 de fevereiro de 1810 entre Portugal e Inglaterra, que visava regulamentar as relações comerciais entre as nações, em uma nova posição depois da transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 (sob proteção inglesa) e da seqüente abertura dos portos do Brasil ao comércio entre as nações amigas. A justificativa do tratado expressava principalmente o desejo das nações em estreitar os laços de amizade e ampliar os benefícios de seus vassalos, por meio de um novo sistema de livre comércio entre os envolvidos, incluindo seus domínios, e no caso português, a nova sede do Império português, o Brasil. Foram acertados no tratado, entre outros pontos, assuntos relativos ao comércio entre os países envolvidos, como no artigo oito, que abole monopólios que pudessem restringir o comércio entre Portugal e Inglaterra (e seus respectivos domínios), embora fossem mantidos os estancos a certos produtos (como os tecidos de lã ingleses, os vinhos portugueses e o pau-brasil). O artigo principal (quinze), que regula as novas tarifas alfandegárias, estabelece que todos os gêneros ingleses (à exceção dos estancados) deveriam ser admitidos sem limitações nos domínios portugueses, pagando direitos de 15%, muito embora o artigo dezoito determinasse restrições na via oposta do comércio. O acordo firmado revela o precário equilíbrio de forças e as dependentes relações entre Portugal e Inglaterra, resultando em uma concessão que favorecia diretamente os produtos ingleses em detrimento dos próprios gêneros portugueses, que pagariam 16% de impostos, e dos estrangeiros de outras nações amigas, taxados em 24%. Este tratado resultou, praticamente, em um domínio inglês no mercado do Brasil, uma vez que se tornava bastante difícil para as outras nações competir com os preços, a variedade e a qualidade dos produtos oriundos da Inglaterra e suas colônias. Provocou profundo mal-estar e insatisfação entre os produtores e negociantes portugueses, que se sentiam lesados no comércio colonial que controlavam com exclusividade anteriormente, e também desagradou aos ingleses, desejosos de mais benefícios e privilégios em troca de terem ajudado na transmigração da Corte e na manutenção da integridade do Império português.
[9] A costa do Malabar compreende geograficamente o lado ocidental da costa da Índia, entre a cidade de Goa e o estado de Kerala, o ponto mais ao sul do território, banhada pelo mar arábico. Historicamente foi a região onde os primeiros navegadores europeus, portugueses, aportaram em busca de especiarias e produtos finos (louças e sedas) das "índias", e estabeleceram suas feitorias. Os principais pontos comerciais da costa foram as cidades de Goa, Cochim e Calicute, conquistadas e dominadas pelos portugueses durante séculos, a exceção da última tomada pelos holandeses ainda no século XVI. Devido ao intenso contato com os europeus, principalmente portugueses, holandeses e ingleses, essas cidades floresceram e tornaram-se bastante cosmopolitas e movimentadas, recebendo produtos (e influência) da África, de territórios árabes, de outras regiões na Índia e da Europa. A costa do Malabar era especializada na recepção, redistribuição e exportação de gêneros vindos de outras regiões, como o arroz proveniente da costa do Coromandel (lado oriental), mas também produzia sal, peixe, madeiras e vegetais, e era responsável pela maior parte da produção de especiarias, tão desejadas e disputadas pelos exploradores e comerciantes europeus. Essa região também foi porta de entrada de produtos da Europa, como por exemplo, a carne, o pão de trigo, o azeite, o vinho, os queijos e a manteiga, introduzidos pelos portugueses principalmente pela capital do Estado português na Índia, Goa. O Malabar também manteve intenso comércio com a costa oriental da África (principalmente com Moçambique, colônia portuguesa), fornecendo gêneros agrícolas em troca de marfim e escravos, entre outros.
Sugestões para uso em sala de aula

Utilizações possíveis
* Nos eixos temáticos: "História das representações e das relações de poder".
* Ao abordar os sub-temas: "Nações, povos, lutas, guerras, revoluções" e "Cidadania e cultura no mundo contemporâneo".

Ao tratar dos seguintes conteúdos
* Administração colonial;
* Alianças e políticas internacionais;
* Presença portuguesa na Índia;
* Coroa portuguesa;
* Processo de formação, expansão e dominação do capitalismo no mundo (a expansão do comércio na Europa do Renascimento, a expansão colonial e o acúmulo de riquezas pelos Estados Nacionais europeus, industrialização, políticas econômicas liberais).

A ABERTURA DOS PORTOS

O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira

Comércio entre Portugal e Rússia no contexto das invasões francesas

Parecer dos conselheiros diretos do príncipe regente d. João acerca da solicitação de Faustino da Silva Ramos, mestre do bergantim Mercúrio Feliz. Com a alegação de ter sido o primeiro negociante a tentar o comércio direto entre Brasil e Rússia, Faustino da Silva solicitou benefícios ou a isenção dos direitos alfandegários que recaíam sobre as suas mercadorias. De parecer contrário à solicitação, os conselheiros ressaltaram que ele não trouxe inovação alguma ao comércio ou à navegação, tendo apenas se aproveitado das oportunidades comerciais possibilitadas pela abertura dos portos brasileiros. Outrossim, enfatizaram que esse novo contexto não afetava os tratados firmados anteriormente entre Portugal e Rússia.
Conjunto documental: Conselho da Fazenda. Consultas sobre vários assuntos
Notação: códice 41
Data-limite: 1808-1830
Título do fundo ou coleção: Conselho da Fazenda
Código do fundo: EL
Argumento de pesquisa: abertura dos portos
Data do documento: 13 de agosto de 1810
Local: Rio de Janeiro
Folha: 20v a 21v

Faustino da Silva Ramos, mestre do bergantim[1] Mercúrio Feliz, alega que tivera a felicidade de ser o primeiro que se afoitou a empreender a viagem de São Petersburgo, na Rússia, para esta corte, trazendo efeitos que até o presente tem sido importados por outras nações; e que para indenizar-se dos prejuízos que sofreu pela injusta detenção que tivera em Copenhague[2], e dos incômodos que quase sempre acompanham as primeiras expedições, implora toda a possível eqüidade nos direitos[3], ainda mesmo daqueles que o suplicante como nacional devesse; e igualmente as licenças necessárias para outra semelhante expedição, tomando S. A. R.[4] ao suplicante e sua família de baixo da sua augusta e real proteção.
Parece aos conselheiros Luís Beltrão de Gouvêa de Almeida, Leonardo Pinheiro de Vasconcelos e Diogo de Toledo, que o decreto de 11 de junho de 1808[5], que regulou os direitos da alfândega no Brasil dos comerciantes nacionais, compreendeu na sua sanção a súplica de Faustino da Silva Ramos, capitão do bergantim Mercúrio Feliz, vindo da Rússia, carregado com gêneros daquele império, que pede, por ser o primeiro navegador que abriu o caminho deste comércio direto, algum benefício ou perdão de direitos. O suplicante não fez uma coisa nova, nem em comércio, nem em navegação, e a utilidade desta viagem e deste comércio ativo e passivo são as que hão de convidar outros empreendedores a tentar especulações da mesma natureza, assim como outros de longo curso. Esta viagem é nova porque nem este nem outros navegadores de comércio a podiam fazer por lhe ser proibida[6]; e neste sentido, qualquer navegação, para o norte ou sul, direta com o Brasil é nova; e todos os que a empreenderem exigirão favores e benefícios nos direitos, o que é um absurdo. O suplicante não abriu uma nova carreira à navegação; aproveitou-se da conhecida e do benefício da carta régia de 28 de janeiro de 1808[7] para ser o primeiro a mostrar a seus compatriotas as utilidades daquele comércio e navegação. Por este motivo somente, merece o favor que V.A.R. for servido fazer-lhe, não como um descobridor ou inventor de caminhos ou coisas ignoradas, mas como um navegador amante da sua nação, que se arriscou primeiro a este comércio direto; sem, contudo, lhe pertencer a graça do perdão de meios direitos, que se acham estabelecidos a certos e determinados gêneros nos tratados de 1787 e 1799[8], porque as altas potências contratantes de Portugal e Rússia, quando ratificaram os tratados não podiam certamente ter em vista o comércio direto com o Brasil, nem os seus plenipotenciários podiam sem ignorância ou crime exceder seus poderes para contratarem sobre um comércio que não existia, que era vedado e que um direito público reconhecido por todas as nações não permitia: antes o fazia exclusivo da nação que tinha colônias. A diferença de tempos e de circunstâncias que alterou o sistema geral de comércio com o Brasil não limitou, nem aumentou os tratados anteriores, que não podiam compreender sucessos não existentes e que até pareciam fora da ordem possível; além de que a letra dos mesmos tratados não necessita de comento ou interpretação; eles falam de comércio direto de Portugal com a Rússia; este está em pé, segundo os seus artigos; a nova legislação a respeito do comércio direto com o Brasil não os destrói ou ofende; assim como as novas graças concedidas a este não podem ser extensivas àquele da compreensão dos tratados porque então faltava a igualdade e reciprocidade que as duas altas potências contratantes quiseram equilibrar e estabelecer, e que se não podem alterar sem o seu unânime consentimento. A vista de tudo V. A. R. mandará o que for servido. Rio em 6 de Agosto de 1810.
S. A. R. Como parece aos conselheiros Luiz Beltrão de Gouvêa de Almeida, Leonardo Pinheiro de Vasconcelos e Diogo de Toledo. Palácio do Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1810.

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[1] Antiga embarcação a vela e remo, pequena e veloz, com dois mastros, própria para combate. Muito usada pelos portugueses no Oriente.
[2] A expansão do Império napoleônico a partir de 1799 resultou na deposição de muitos monarcas que não compactuavam com os planos políticos do imperador francês para o continente europeu. Alguns governos, entretanto, resistiram às pressões impostas pela França que vinha promovendo uma campanha pelo controle do comércio global. A atitude desses governantes de não aderir às imposições francesas levou o imperador a proibir, em 1806, o desembarque em quaisquer portos continentais europeus de navios a serviço de países que não estivessem aliados à França. O decreto do "Bloqueio Continental" afetava, assim, diversas nações que dependiam do comércio com países não alinhados com o governo bonapartista. Entre estes, encontravam-se Rússia e Dinamarca que em um primeiro momento se mantiveram neutros. Copenhague, capital dinamarquesa, estava sob constante ameaça francesa, o que levou a Inglaterra a lançar um ataque secreto e preventivo em 1807. Os portos dinamarqueses foram então destruídos e sua frota tomada pelos ingleses. A brutalidade do ataque, que levou à morte de mais de mil civis dinamarqueses, despertou críticas de toda a Europa, inclusive de membros do parlamento britânico. Apesar disso, foi considerada um sucesso em termos estratégicos, pois garantia uma rota de entrada de produtos ingleses pelo Norte da Europa.
[3] A carta régia de 28 de janeiro de 1808 que determinou a abertura dos portos do Brasil às nações amigas de Portugal, estabelecia que, todos e quaisquer gêneros transportados em navios portugueses ou estrangeiros pagariam 24% de direitos nas alfândegas, a exceção dos gêneros molhados (vinhos e azeites), que pagariam o dobro dos direitos. No entanto, no Tratado de Navegação e Comércio assinado em fevereiro de 1810 com a Inglaterra, Portugal reduziu os direitos sobre os produtos daquele país para 15% (cumprindo sua parte em um "acordo", por assim dizer, de ajuda entre os reinos, quando da transferência da Corte para o Brasil em 1808 que contou com o apoio e proteção dos ingleses), estabeleceu que os produtos portugueses pagariam 16% de direitos e manteve em 24% os direitos sobre produtos estrangeiros (ou transportados em navios estrangeiros) de nações amigas, praticamente fechando, com esta medida, os portos brasileiros ao livre comércio exterior - favorecendo a Inglaterra. Essa medida gerou insatisfação e protestos por parte de portugueses, ingleses (insatisfeitos com as vantagens obtidas) e estrangeiros aliados comerciais de Portugal de longa data. Neste documento, o autor chega mesmo a evocar o Tratado de 1787 com a Rússia como base de sua queixa por mais igualdade de direitos e condições de comércio.
[4] S. A. R., ou "Sua Alteza Real", neste período refere-se a d. João VI, segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, que se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada louca. Foi sob o governo do então príncipe regente d. João, que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Em decorrência da invasão francesa a Portugal, a Corte portuguesa e a família real partiram para o Brasil em novembro daquele mesmo ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão: a abertura dos portos às nações amigas; a liberação para criação de manufaturas; a criação do Banco do Brasil; a fundação da Real Biblioteca; a criação de escolas e academias, e a implantação de uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social da colônia. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho Pedro como regente. Ainda durante seu reinado, foi reconhecida a independência do Brasil, no ano de 1825.
[5] O decreto de 11 de junho de 1808 estipulou que as mercadorias e fazendas comercializadas pelos vassalos do Rei em embarcações nacionais pagariam apenas 16% de entrada nas alfândegas brasileiras e os gêneros molhados, por sua vez, pagariam a terça parte do que fora estabelecido pela carta de 28 de janeiro de 1808. A lei também determinava que as mercadorias importadas pelos vassalos que desejassem reexportá-las para reinos e domínios estrangeiros, pagariam apenas 4% de baldeação, podendo ser embarcadas em navios estrangeiros ou nacionais. Tais disposições só valeriam nas alfândegas da Corte, da Bahia, de Pernambuco, Maranhão e Pará, sendo recomendada também maior fiscalização na cobrança dos direitos.
[6] Esta sentença se refere às relações comerciais do Brasil com Portugal até a assinatura da carta régia de 28 de janeiro de 1808, que abria os portos brasileiros ao comércio com outras nações aliadas da metrópole. Portugal, orientado por políticas mercantilistas de exploração colonial, proibia o comércio direto de outras nações com suas colônias, cabendo ao Brasil fornecer gêneros tropicais ou metais preciosos em regime de monopólio exclusivo para a metrópole, que reexportaria esses gêneros para os outros países da Europa, mantendo os lucros das transações. Em contrapartida, somente a metrópole portuguesa poderia comercializar gêneros manufaturados com o Brasil, ainda que importados de outras nações, visto que a colônia foi proibida de produzir estes gêneros pelo alvará de 5 de janeiro de 1785.
[7] Pela carta régia de 28 de janeiro de 1808, d. João VI ordenou a abertura dos portos brasileiros às "nações amigas" do Império português. A assinatura do decreto era a conclusão de um processo que se iniciara com a invasão de Portugal pelos exércitos franceses e que levara d. João VI a transferir a Corte para o Brasil. A medida atendia não apenas aos interesses do Império português, como também de outros países que tinham prejuízos com a restrição imposta pelos franceses, entre eles, Rússia e Inglaterra. Pela nova lei, não apenas o comércio entre seus vassalos estava liberado, como também fora levantado o embargo aos navios estrangeiros, com exceção das embarcações francesas e espanholas, tratadas formalmente como inimigos. Passaram a ser admitidas nas alfândegas brasileiras todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias, transportadas em navios estrangeiros (que não estivessem em guerra com Portugal) ou em navios portugueses, satisfazendo por direitos de entrada 24%. Vinhos, águas ardentes e azeites doces - os chamados gêneros molhados - pagariam o dobro do que até então se achava estabelecido. Quanto à exportação, a carta estabeleceu que os vassalos do Rei e estrangeiros poderiam exportar para os portos das "nações amigas" todos e quaisquer gêneros e produções coloniais, à exceção do pau-brasil ou outros produtos "estancados", que pagariam os mesmos direitos que vigoravam nas diversas capitanias.
[8] Refere-se ao Tratado de Amizade, Navegação e Comércio firmado entre Portugal e Rússia em 1787 e renovado em 1799 por meio dos ministros plenipotenciários Francisco José Horta Machado (Portugal) e Alexandre Príncipe de Bezborodko (Rússia). Pela carta de 1787 foram definidas vantagens comerciais para ambos os reinos, a saber: vinhos portugueses transportados em navios russos ou portugueses só pagariam quatro rublos de direito de entrada nas alfândegas russas, assim como o sal pagaria metade dos direitos, caso não excedesse os valores e quantidades estipulados para transporte, por tratar-se de um gênero estancado; tábuas, madeira para construção de navios, cânhamo, linhaça, óleo de cânhamo e linho, barras e arcos de ferro, âncoras e peças de artilharia, balas e bombas pagariam metade dos direitos nas alfândegas portuguesas, assim como algumas fazendas russas. Além destas vantagens também foram estipuladas facilidades para o conserto de navios nos portos de ambos os países e garantia de respeito ao culto religioso. Em 19 de abril de 1799 foi publicada a ratificação do tratado de 1787, que confirmava as vantagens fiscais para os produtos de ambas as nações e apontava para a necessidade de apresentação de certidões que confirmassem a procedência dos produtos. Acrescentava também a diminuição pela metade dos impostos cobrados nas alfândegas portuguesas sobre os seguintes produtos russos: os brins, lonas, e mais fazendas de linho próprias para o velame dos navios. Já nas alfândegas russas, o azeite português e o tabaco em pó, rolo ou folha, vindo do Brasil, também seriam taxados pela metade. O novo acordo vigoraria por 12 anos a partir daquela data.

Sugestões para uso em sala de aula
Utilizações possíveis
* Nos eixos temáticos: "História das representações e das relações de poder".
* Ao abordar os sub-temas: "Nações, povos, lutas, guerras, revoluções" e "Cidadania e cultura no mundo contemporâneo".

Ao tratar dos seguintes conteúdos
* Administração colonial;
* Coroa portuguesa;
* Processo de formação, expansão e dominação do capitalismo no mundo (a expansão do comércio na Europa do Renascimento, a expansão colonial e o acúmulo de riquezas pelos Estados Nacionais europeus, entre outros).

Abertura dos portos as nações amigas

Leis Históricas

Carta Régia - de 28 de Janeiro 1808

ABRE OS PORTOS DO BRAZIL AO COMMERCIO DIRECTO ESTRANGEIRO COM EXCEPÇÃO DOS GENEROS ESTANCADOS.


Conde da Ponte, do meu Conselho, Governador e Capitão General da Capitania da Bahia. Amigo. Eu o Principe Regente vos envio muito saudar, como aquelle que amo. Attendendo á representação, que fizestes subir á minha real presença sobre se achar interrompido e suspenso o commercio desta Capitania, com grave prejuizo dos meus vassallos e da minha Real Fazenda, em razão das criticas e publicas circumstancias da Europa; e querendo dar sobre este importante objecto alguma providencia prompta e capaz de melhorar o progresso de taes damnos: sou servido ordenar interina e provisoriamente, emquanto não consolido um systema geral que effectivamente regule semelhantes materias, o seguinte.
Primo: Que sejam admissiveis nas Alfandegas do Brazil todos e quaesquer generos, fazendas e mercadorias transportados, ou em navios estrangeiros das Potencias, que se conservam em paz e harmonia com a minha Real Corôa, ou em navios dos meus vassallos, pagando por entrada vinte e quatro por cento; a saber: vinte de direitos grossos, e quatro do donativo já estabelecido, regulando-se a cobrança destes direitos pelas pautas, ou aforamentos, por que até o presente se regulão cada uma das ditas Alfandegas, ficando os vinhos, aguas ardentes e azeites doces, que se denominam molhados, pagando o dobro dos direitos, que até agora nellas satisfaziam. Secundo: Que não só os meus vassallos, mas tambem os sobreditos estrangeiros possão exportar para os Portos, que bem lhes parecer a beneficio do commercio e agricultura, que tanto desejo promover, todos e quaesquer generos e producções coloniaes, á excepção do Páo Brazil, ou outros notoriamente estancados, pagando por sahida os mesmos direitos já estabelecidos nas respectivas Capitanias, ficando entretanto como em suspenso e sem vigor, todas as leis, cartas regias ou outras ordens que até aqui prohibiam neste Estado do Brazil o reciproco commercio e navegação entre os meus vassallos e estrangeiros.
O que tudo assim fareis executar com o zelo e actividade que de vós espero. Escripta na Bahia aos 28 de janeiro de 1808.
PRINCIPE.
Para o Conde da Ponte.
______________________________________________

Fonte: BRASIL. Leis etc. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. p. 1-2.

D. JOÃO VI, UM PACATO SOBERANO

Por José de Almeida Amaral Jr*


Em época do ano como esta, há exatos dois séculos atrás, partiu de Lisboa uma esquadra portuguesa composta de aproximadamente 30 navios armados e 40 mercantes, além de 4 embarcações inglesas como reforço de escolta que, deixando o Velho Continente, rumou para o Novo Mundo, em direção à sua colônia de além-mar. Era o dia 29 de novembro de 1807. Histórica data em que a Corte lusa escapava da invasão ordenada por Napoleão Bonaparte. Resultado: nunca mais as coisas ficariam como estavam até então para estes lados do Atlântico. E, a bem da verdade, nem por lá.
Para compreendermos pouco mais o caso é importante situarmos aqui um brevíssimo cenário existente daquele período. O que motivou a estratégica retirada da família real.
Era um tempo turbulento. Em 1775 o reino britânico entrava em guerra contra sua colônia na América do Norte. Os EUA iniciaram a luta pela independência e conseguiram seu intento em 1776 tornando-se uma república presidencialista. Novos ideais iam se desenhando para o mundo. A França, por sua vez, passou em 1789 pela revolução que quatro anos depois culminaria na decapitação de Luis XVI. A burguesia chegava ao poder colocando em xeque a estabilidade da política continental, ameaçando por tabela com esse fato os demais regimes absolutistas através de suas visões iluministas e liberais. Os vizinhos, assustados, aliam-se para conter maiores ondas de mudanças. Por outro lado, as próprias características da tomada de poder interno, com vários interesses aglutinados no chamado 3º Estado – camponeses, trabalhadores urbanos e burguesia – acabaram por gerar uma intensa falta de estabilidade entre os revolucionários. Isto possibilitou a ascensão do comandante Napoleão Bonaparte, com apoio do segmento burguês, para evitar maior radicalidade no processo. Porém, o militar, por sua vez, além da ordem interna, tinha desejos de conquistas externas. E estes se chocavam contra os interesses dos ingleses, protagonistas à época de pioneira industrialização. Tensões entre as duas grandes potências refletiriam no cotidiano alheio.
Portugal naqueles idos era governado por d. Maria I, filha de d. José, falecido em 1777. Contudo, seu reinado não foi muito longo. Em 1792 constatou-se um processo doentio irreversível sobre a soberana. Ela enlouqueceu. Desta forma, foi forçado a governar, como regente, d. João, seu segundo filho, já que o primogênito José – sobre o qual foram feitos todos os investimentos para a sucessão – havia morrido em 1788. D. João tinha 24 anos e era casado há 6 com d. Carlota Joaquina de Bourbon, oito anos mais moça que ele, filha de Carlos IV da Espanha. Ele resistiu a receber o trono. Esperava a cura da mãe, que nunca veio. Somente em 1799 se convenceu definitivamente da sua posição. E, se no governo materno houve tranqüilidade, não durou muito mais a calmaria. Em 1793 uniu-se aos espanhóis para lutar contra os revolucionários republicanos na França. Alinhou a marinha portuguesa à inglesa na proteção das rotas comerciais. Em 1799 experimentou um momento de paz. Que foi breve.
No ano de 1801, Napoleão levou a Espanha para o lado francês. E convenceu aos espanhóis atacarem Portugal, aliado inglês desde o século XVIII, especialmente devido às relações comerciais. A ação franco-espanhola toma do estado português Olivença, no Alentejo. Adiante, Napoleão, desde 1804 imperador da França, expandindo seu poder exterior, volta novamente atenções para Lisboa. Exige que d. João rompa suas relações com a Inglaterra. Quer que lhe feche os portos e prenda os súditos britânicos em território luso. Deixou o monarca enrascado. Portugal era dependente da economia inglesa. Porém, sem condições de enfrentar militarmente os franceses, realizou parte do comando: fechou os portos, todavia não prendeu e nem confiscou os bens dos britânicos imigrantes. O imperador francês não tolerou o resultado e decidiu tomar providências mais sérias.
Se a situação de d. João parecia difícil, envolvido entre os interesses de ingleses e franceses, havemos de recordar também que essa circunstância ainda tinha outros ingredientes que a pioravam: o próprio casamento era algo bastante complicado. A esposa jamais deixou fraquejarem seus vínculos com a Espanha e isto fazia com que ela urdisse constantemente contra seu próprio marido, a quem detestava. Havia muita intriga palaciana. Ambiciosa, tentou assumir o mando. Em 1805 uma conspiração fracassou, envolvendo interesses franco-espanhóis e setores mais retrógrados da nação, ao tentarem colocá-la no poder. Pairava o fantasma da União Ibérica de 1580 e 1640. Ele, todavia, conseguiu se manter, mesmo que de forma insegura. Paralelamente, Napoleão definiu como agir contra o reino luso. Em setembro de 1806, mandou preparar a invasão do solo português através do gal. Junot. E assim foi feito. Outubro de 1807 as tropas francesas já estavam na fronteira da Espanha prontas para o ataque. Então, o regente teria em contrapartida que também agir. E deveria ser prontamente. Não era mais possível contemporizar, como habitualmente lidava com os problemas. O que fazer?
Durante o século XVII o pe. Antonio Vieira havia levantado uma possibilidade, defendida a seu modo também 200 anos depois pelo ministro d. Rodrigo Souza Coutinho, representante português em Turim e analista das relações internacionais. Era favorável a uma maior aproximação da Coroa para com seus súditos da América. Evitar-se-iam as perdas que os ingleses haviam passado com os EUA. Concebia um grande império luso-brasileiro, integrado e administrado de forma racional e moderna. Entretanto, não lograram viço suas intenções. D. Rodrigo perdeu o cargo em 1803 para Antonio Araújo Azevedo, um ‘francófilo’. E dessa troca adiante as condições internas na Corte passaram a ficar mais escorregadias para o baixinho e roliço d. João. Até que chegou o momento de resistir à invasão. Ou não. Afinal, enfrentar os estrangeiros não seria razoável. Assim, ganhou vulto o resgate daquela antiga idéia. Em 24/11 convocou o Conselho de Estado para tomar a difícil, mas hábil decisão: navegar era preciso. E rumo ao Brasil. E deu a importante cartada no jogo.
Em 29 de novembro de 1807, após um dia chuvoso, o príncipe d. João, d. Carlota, seus filhos, a rainha d. Maria I, vários outros parentes partiram em meio ao outono lisboeta. Do rio Tejo saíram as embarcações. Seguiram, além da família real, nobres, funcionários da Corte, ministros e políticos do Reino. Cerca de 15 mil pessoas. Os franceses ao chegarem à capital portuguesa em 30/11 ficaram a ver navios, frustrados com a não captura dos governantes lusos. Tudo o que era necessário para permanecer governando foi transportado. Insistia, entrementes, uma sensação dúbia: covardia ou esperteza? D. João estava angustiado. Seu país sendo atacado, o povo morrendo e ele seguindo viagem. Desconfortos psicológicos e físicos. Tormentas nos pensamentos e nos vagalhões dos mares que chegou a atrapalhar a travessia. Escassearam os víveres. Natal, Ano Novo e Dia de Reis se passaram. Então, a terra firme finalmente chegou. Em 22 de janeiro de 1808 os barcos atracaram na antiga primeira capital do Brasil, a ensolarada Salvador. Porém, o abatido e cheio de dúvidas d. João após 54 dias no mar pisou o solo brasileiro apenas 24 hs depois. Foi o primeiro rei europeu a fazê-lo. Revisões nos navios, um pouco de descanso. Seguiram a viagem em 26 de fevereiro. Dia 7 de março a família real chegava ao destino final, a cidade do Rio de Janeiro.
O fato representou uma grande vitória da Inglaterra. Durante o percurso se intensificaram os pedidos para o monopólio do comércio com o Brasil. D. João não estava certo dessa atitude, contudo foi convencido pelos argumentos de Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, com base em acordo assinado em 22/10/1807. Então, a 1ª carta régia, datando de 28/12/1807 foi promulgada. Ao chegar à Bahia estavam abertos os portos ‘às nações amigas’, terminando o monopólio com a metrópole lusitana. Muitos vêem aqui o início da independência do país, dentro dos quadros do sistema absolutista. A partir de então foi revogado o decreto que impedia a existência de indústrias. Fundou o governo uma escola de cirurgia na Bahia, outra no Rio de Janeiro. Nasceu um curso de economia também na capital e o Jardim Botânico, o Observatório Astronômico e a Biblioteca Pública. A tipografia também começou a trabalhar. Criou-se a Academia da Marinha e a Academia Militar. Foi fundado o Banco do Brasil. Incentivou-se o plantio de novas espécies de vegetais. Uma nova vida tomou conta da antiga colônia. Especialmente da cidade do Rio. Tornou-se sede da Monarquia e do Império. Portugal era nesse momento um simples domínio do reino. E em conflito contra os ocupantes franceses que, aliás, duraria até o ano de 1811 quando se retiraram.
Após a derrota de Napoleão a Inglaterra assumiu um papel mais poderoso no contexto europeu em nova conjuntura. Começa a pressionar contra o tráfico negreiro, que interessava à nossa economia. E, claro, os patrícios de d. João passaram a aguardar seu retorno. Como o dirigente, sempre tranqüilo, não demonstrava ânimo em partir, um mal estar ganhou terreno. Para os europeus, para o Congresso de Viena, o vivido pelo monarca era um exílio. Tinha de ser encerrado por conta das pretensões políticas lusas no contexto continental. Então, para contornar o problema, foi criado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Uma imensa significação para este lado. E um golpe para os interesses lusos que perdiam importância. D. João gostava do Rio de Janeiro, de sua paisagem e seu crescimento urbano. Aqui enterrou a mãe em 1816, casou o filho, d. Pedro, foi aclamado El-Rei d.João VI em 1818 e viveu longe de d. Carlota, para seu sossego.
Apesar de tudo isso, teria que retornar após 13 anos cariocas. A Revolução Constitucional do Porto explodiu. Depois de muito protelar e ver a revolta dos portugueses no Brasil e fora dele se ampliar, a contragosto, embarcou com d. Carlota e a Corte em abril de 1821 de volta à Europa. Abandonava o Brasil para nunca mais regressar e sentia que a independência do país vinha a caminho. Deixou, assim, em solo brasileiro, o filho regente d. Pedro para dirigir o processo. Encerrava, desta maneira, sua passagem por estes quadrantes. E levou consigo quase todo o dinheiro do Banco do Brasil. Saiu sem festas, em meio a uma situação que se complicava.
Historiadores como o pernambucano Evaldo Cabral de Mello acreditam que essa saída foi uma manobra contra-revolucionaria para conter o movimento liberal que desde a cidade do Porto em 1820 influenciava iniciativas também por aqui. Além do mais, para Mello, a corte no Brasil não fez mais do que parasitar as províncias como já fazia anteriormente em Portugal. Prova disso é que nem adaptou sua máquina administrativa a uma extensão territorial tão grande. As coisas foram ‘tocadas com a barriga’, em seu entender. Já para o mineiro José Murilo de Carvalho, da UFRJ, uma das coisas mais importantes legadas pelo período de d. João foi a extensa unidade territorial que foi preservada. Sem a presença da família Real no contexto vivido no século XIX o Brasil se fragmentaria. Não seria o que é hoje. Tornar-nos-íamos algo semelhante aos vários pequenos países da América, com cerca de 6 nações distintas. Enxergar de outra forma a importância de d. João é mera caricatura, acredita Carvalho. Também vêem que há um excesso de chacotas sobre o monarca os historiadores Lúcia Mª Bastos Neves e Guilherme Pereira das Neves, da URFJ e da UFF, respectivamente. Ele não era um homem bonito, nem de visão. Não foi um estadista de mão cheia, com intenções de ‘grandes proezas militares e administrativas’. Porém revelou bom caráter e praticidade ao governar. Está longe da figura patética comedora de frangos apresentada em filme recentemente. Para o clássico Caio Prado Jr. a vinda da Corte singulariza o processo de independência do país no contexto americano. Enquanto para os demais isto se dá no campo de batalha, para nós o próprio governo metropolitano vai lançar as bases da autonomia da ex-colônia. Não se pode computar o tempo vivido aqui pela nobreza lusa como sendo parte do chamado ‘período colonial’, afirma Prado Jr. Rui Ramos, historiador português da Universidade de Lisboa e de Oxford afirma a importância da família real decidir partir. Portugal era pedaço de uma monarquia e não um ‘Estado-nação’. Por isso a correta opção em preservar a nobreza e deslocar seu governo de território.
D. João VI chega a Lisboa com toda a família real - excetuando-se Pedro - mais 4 mil pessoas e prestes a completar 54 anos de vida. Dona Carlota ao pisar no porto raspa os sapatos para ‘não levar terra do Brasil neles’. Daquele lado do Atlântico, d. João VI vê confirmar as perspectivas da independência brasileira. Portugal se opõe ao processo por conta da imagem frente aos demais governos: perda de um território tão grande e, ainda mais, comandado por um herdeiro do trono português. A Inglaterra, aliada dos portugueses, preserva os bons laços com o Brasil e apóia o processo. Deste modo, a Independência se efetiva em 1822, intermediada pelo Império Britânico. O Brasil paga 2 milhões de libras como indenização a Lisboa e d. Pedro I – em Portugal, Pedro IV – permanece mantendo a condição de herdeiro da Coroa lusa. Além deste desgaste, novamente em sua pátria d.João VI teve que reviver maus momentos do passado, com d. Carlota gerando intrigas palacianas, conspirando a favor do caçula e preferido d. Miguel, um extremo absolutista. Tentam um golpe em 1824. Doente e cansado d. João VI morre em 1826 aos 59 anos. Portugal está um caos, em eminente guerra civil. O Brasil, enquanto instala sua primeira Assembléia Geral, vê o Uruguai iniciar sua luta pela independência no sul país.
Efemérides como estas são importantes para fazermos reflexões a cerca de nossa história: o que aconteceu até aqui para chegarmos às condições vividas atualmente? E, além disso, como não repetir os erros do passado para a construção de um futuro melhor. De qualquer modo, aquela decisão de d.João zarpar com a família real de Lisboa em 29 de novembro de 1807 não resultou certamente em um bucólico convescote em jardins tropicais.
10/12/2007

* José de Almeida Amaral Jr, professor universitário em Ciências Sociais. Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação. Colunista do Jornal Cantareira, colunista pela Pascom na Rádio 9 de Julho Am 1600 Khz e colaborador do Jornal Mundo Lusíada na Web. Clique aqui para entrar em contato.