quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A ABERTURA DOS PORTOS

O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira

Comércio entre Portugal e Rússia no contexto das invasões francesas

Parecer dos conselheiros diretos do príncipe regente d. João acerca da solicitação de Faustino da Silva Ramos, mestre do bergantim Mercúrio Feliz. Com a alegação de ter sido o primeiro negociante a tentar o comércio direto entre Brasil e Rússia, Faustino da Silva solicitou benefícios ou a isenção dos direitos alfandegários que recaíam sobre as suas mercadorias. De parecer contrário à solicitação, os conselheiros ressaltaram que ele não trouxe inovação alguma ao comércio ou à navegação, tendo apenas se aproveitado das oportunidades comerciais possibilitadas pela abertura dos portos brasileiros. Outrossim, enfatizaram que esse novo contexto não afetava os tratados firmados anteriormente entre Portugal e Rússia.
Conjunto documental: Conselho da Fazenda. Consultas sobre vários assuntos
Notação: códice 41
Data-limite: 1808-1830
Título do fundo ou coleção: Conselho da Fazenda
Código do fundo: EL
Argumento de pesquisa: abertura dos portos
Data do documento: 13 de agosto de 1810
Local: Rio de Janeiro
Folha: 20v a 21v

Faustino da Silva Ramos, mestre do bergantim[1] Mercúrio Feliz, alega que tivera a felicidade de ser o primeiro que se afoitou a empreender a viagem de São Petersburgo, na Rússia, para esta corte, trazendo efeitos que até o presente tem sido importados por outras nações; e que para indenizar-se dos prejuízos que sofreu pela injusta detenção que tivera em Copenhague[2], e dos incômodos que quase sempre acompanham as primeiras expedições, implora toda a possível eqüidade nos direitos[3], ainda mesmo daqueles que o suplicante como nacional devesse; e igualmente as licenças necessárias para outra semelhante expedição, tomando S. A. R.[4] ao suplicante e sua família de baixo da sua augusta e real proteção.
Parece aos conselheiros Luís Beltrão de Gouvêa de Almeida, Leonardo Pinheiro de Vasconcelos e Diogo de Toledo, que o decreto de 11 de junho de 1808[5], que regulou os direitos da alfândega no Brasil dos comerciantes nacionais, compreendeu na sua sanção a súplica de Faustino da Silva Ramos, capitão do bergantim Mercúrio Feliz, vindo da Rússia, carregado com gêneros daquele império, que pede, por ser o primeiro navegador que abriu o caminho deste comércio direto, algum benefício ou perdão de direitos. O suplicante não fez uma coisa nova, nem em comércio, nem em navegação, e a utilidade desta viagem e deste comércio ativo e passivo são as que hão de convidar outros empreendedores a tentar especulações da mesma natureza, assim como outros de longo curso. Esta viagem é nova porque nem este nem outros navegadores de comércio a podiam fazer por lhe ser proibida[6]; e neste sentido, qualquer navegação, para o norte ou sul, direta com o Brasil é nova; e todos os que a empreenderem exigirão favores e benefícios nos direitos, o que é um absurdo. O suplicante não abriu uma nova carreira à navegação; aproveitou-se da conhecida e do benefício da carta régia de 28 de janeiro de 1808[7] para ser o primeiro a mostrar a seus compatriotas as utilidades daquele comércio e navegação. Por este motivo somente, merece o favor que V.A.R. for servido fazer-lhe, não como um descobridor ou inventor de caminhos ou coisas ignoradas, mas como um navegador amante da sua nação, que se arriscou primeiro a este comércio direto; sem, contudo, lhe pertencer a graça do perdão de meios direitos, que se acham estabelecidos a certos e determinados gêneros nos tratados de 1787 e 1799[8], porque as altas potências contratantes de Portugal e Rússia, quando ratificaram os tratados não podiam certamente ter em vista o comércio direto com o Brasil, nem os seus plenipotenciários podiam sem ignorância ou crime exceder seus poderes para contratarem sobre um comércio que não existia, que era vedado e que um direito público reconhecido por todas as nações não permitia: antes o fazia exclusivo da nação que tinha colônias. A diferença de tempos e de circunstâncias que alterou o sistema geral de comércio com o Brasil não limitou, nem aumentou os tratados anteriores, que não podiam compreender sucessos não existentes e que até pareciam fora da ordem possível; além de que a letra dos mesmos tratados não necessita de comento ou interpretação; eles falam de comércio direto de Portugal com a Rússia; este está em pé, segundo os seus artigos; a nova legislação a respeito do comércio direto com o Brasil não os destrói ou ofende; assim como as novas graças concedidas a este não podem ser extensivas àquele da compreensão dos tratados porque então faltava a igualdade e reciprocidade que as duas altas potências contratantes quiseram equilibrar e estabelecer, e que se não podem alterar sem o seu unânime consentimento. A vista de tudo V. A. R. mandará o que for servido. Rio em 6 de Agosto de 1810.
S. A. R. Como parece aos conselheiros Luiz Beltrão de Gouvêa de Almeida, Leonardo Pinheiro de Vasconcelos e Diogo de Toledo. Palácio do Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1810.

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[1] Antiga embarcação a vela e remo, pequena e veloz, com dois mastros, própria para combate. Muito usada pelos portugueses no Oriente.
[2] A expansão do Império napoleônico a partir de 1799 resultou na deposição de muitos monarcas que não compactuavam com os planos políticos do imperador francês para o continente europeu. Alguns governos, entretanto, resistiram às pressões impostas pela França que vinha promovendo uma campanha pelo controle do comércio global. A atitude desses governantes de não aderir às imposições francesas levou o imperador a proibir, em 1806, o desembarque em quaisquer portos continentais europeus de navios a serviço de países que não estivessem aliados à França. O decreto do "Bloqueio Continental" afetava, assim, diversas nações que dependiam do comércio com países não alinhados com o governo bonapartista. Entre estes, encontravam-se Rússia e Dinamarca que em um primeiro momento se mantiveram neutros. Copenhague, capital dinamarquesa, estava sob constante ameaça francesa, o que levou a Inglaterra a lançar um ataque secreto e preventivo em 1807. Os portos dinamarqueses foram então destruídos e sua frota tomada pelos ingleses. A brutalidade do ataque, que levou à morte de mais de mil civis dinamarqueses, despertou críticas de toda a Europa, inclusive de membros do parlamento britânico. Apesar disso, foi considerada um sucesso em termos estratégicos, pois garantia uma rota de entrada de produtos ingleses pelo Norte da Europa.
[3] A carta régia de 28 de janeiro de 1808 que determinou a abertura dos portos do Brasil às nações amigas de Portugal, estabelecia que, todos e quaisquer gêneros transportados em navios portugueses ou estrangeiros pagariam 24% de direitos nas alfândegas, a exceção dos gêneros molhados (vinhos e azeites), que pagariam o dobro dos direitos. No entanto, no Tratado de Navegação e Comércio assinado em fevereiro de 1810 com a Inglaterra, Portugal reduziu os direitos sobre os produtos daquele país para 15% (cumprindo sua parte em um "acordo", por assim dizer, de ajuda entre os reinos, quando da transferência da Corte para o Brasil em 1808 que contou com o apoio e proteção dos ingleses), estabeleceu que os produtos portugueses pagariam 16% de direitos e manteve em 24% os direitos sobre produtos estrangeiros (ou transportados em navios estrangeiros) de nações amigas, praticamente fechando, com esta medida, os portos brasileiros ao livre comércio exterior - favorecendo a Inglaterra. Essa medida gerou insatisfação e protestos por parte de portugueses, ingleses (insatisfeitos com as vantagens obtidas) e estrangeiros aliados comerciais de Portugal de longa data. Neste documento, o autor chega mesmo a evocar o Tratado de 1787 com a Rússia como base de sua queixa por mais igualdade de direitos e condições de comércio.
[4] S. A. R., ou "Sua Alteza Real", neste período refere-se a d. João VI, segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, que se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada louca. Foi sob o governo do então príncipe regente d. João, que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Em decorrência da invasão francesa a Portugal, a Corte portuguesa e a família real partiram para o Brasil em novembro daquele mesmo ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão: a abertura dos portos às nações amigas; a liberação para criação de manufaturas; a criação do Banco do Brasil; a fundação da Real Biblioteca; a criação de escolas e academias, e a implantação de uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social da colônia. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho Pedro como regente. Ainda durante seu reinado, foi reconhecida a independência do Brasil, no ano de 1825.
[5] O decreto de 11 de junho de 1808 estipulou que as mercadorias e fazendas comercializadas pelos vassalos do Rei em embarcações nacionais pagariam apenas 16% de entrada nas alfândegas brasileiras e os gêneros molhados, por sua vez, pagariam a terça parte do que fora estabelecido pela carta de 28 de janeiro de 1808. A lei também determinava que as mercadorias importadas pelos vassalos que desejassem reexportá-las para reinos e domínios estrangeiros, pagariam apenas 4% de baldeação, podendo ser embarcadas em navios estrangeiros ou nacionais. Tais disposições só valeriam nas alfândegas da Corte, da Bahia, de Pernambuco, Maranhão e Pará, sendo recomendada também maior fiscalização na cobrança dos direitos.
[6] Esta sentença se refere às relações comerciais do Brasil com Portugal até a assinatura da carta régia de 28 de janeiro de 1808, que abria os portos brasileiros ao comércio com outras nações aliadas da metrópole. Portugal, orientado por políticas mercantilistas de exploração colonial, proibia o comércio direto de outras nações com suas colônias, cabendo ao Brasil fornecer gêneros tropicais ou metais preciosos em regime de monopólio exclusivo para a metrópole, que reexportaria esses gêneros para os outros países da Europa, mantendo os lucros das transações. Em contrapartida, somente a metrópole portuguesa poderia comercializar gêneros manufaturados com o Brasil, ainda que importados de outras nações, visto que a colônia foi proibida de produzir estes gêneros pelo alvará de 5 de janeiro de 1785.
[7] Pela carta régia de 28 de janeiro de 1808, d. João VI ordenou a abertura dos portos brasileiros às "nações amigas" do Império português. A assinatura do decreto era a conclusão de um processo que se iniciara com a invasão de Portugal pelos exércitos franceses e que levara d. João VI a transferir a Corte para o Brasil. A medida atendia não apenas aos interesses do Império português, como também de outros países que tinham prejuízos com a restrição imposta pelos franceses, entre eles, Rússia e Inglaterra. Pela nova lei, não apenas o comércio entre seus vassalos estava liberado, como também fora levantado o embargo aos navios estrangeiros, com exceção das embarcações francesas e espanholas, tratadas formalmente como inimigos. Passaram a ser admitidas nas alfândegas brasileiras todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias, transportadas em navios estrangeiros (que não estivessem em guerra com Portugal) ou em navios portugueses, satisfazendo por direitos de entrada 24%. Vinhos, águas ardentes e azeites doces - os chamados gêneros molhados - pagariam o dobro do que até então se achava estabelecido. Quanto à exportação, a carta estabeleceu que os vassalos do Rei e estrangeiros poderiam exportar para os portos das "nações amigas" todos e quaisquer gêneros e produções coloniais, à exceção do pau-brasil ou outros produtos "estancados", que pagariam os mesmos direitos que vigoravam nas diversas capitanias.
[8] Refere-se ao Tratado de Amizade, Navegação e Comércio firmado entre Portugal e Rússia em 1787 e renovado em 1799 por meio dos ministros plenipotenciários Francisco José Horta Machado (Portugal) e Alexandre Príncipe de Bezborodko (Rússia). Pela carta de 1787 foram definidas vantagens comerciais para ambos os reinos, a saber: vinhos portugueses transportados em navios russos ou portugueses só pagariam quatro rublos de direito de entrada nas alfândegas russas, assim como o sal pagaria metade dos direitos, caso não excedesse os valores e quantidades estipulados para transporte, por tratar-se de um gênero estancado; tábuas, madeira para construção de navios, cânhamo, linhaça, óleo de cânhamo e linho, barras e arcos de ferro, âncoras e peças de artilharia, balas e bombas pagariam metade dos direitos nas alfândegas portuguesas, assim como algumas fazendas russas. Além destas vantagens também foram estipuladas facilidades para o conserto de navios nos portos de ambos os países e garantia de respeito ao culto religioso. Em 19 de abril de 1799 foi publicada a ratificação do tratado de 1787, que confirmava as vantagens fiscais para os produtos de ambas as nações e apontava para a necessidade de apresentação de certidões que confirmassem a procedência dos produtos. Acrescentava também a diminuição pela metade dos impostos cobrados nas alfândegas portuguesas sobre os seguintes produtos russos: os brins, lonas, e mais fazendas de linho próprias para o velame dos navios. Já nas alfândegas russas, o azeite português e o tabaco em pó, rolo ou folha, vindo do Brasil, também seriam taxados pela metade. O novo acordo vigoraria por 12 anos a partir daquela data.

Sugestões para uso em sala de aula
Utilizações possíveis
* Nos eixos temáticos: "História das representações e das relações de poder".
* Ao abordar os sub-temas: "Nações, povos, lutas, guerras, revoluções" e "Cidadania e cultura no mundo contemporâneo".

Ao tratar dos seguintes conteúdos
* Administração colonial;
* Coroa portuguesa;
* Processo de formação, expansão e dominação do capitalismo no mundo (a expansão do comércio na Europa do Renascimento, a expansão colonial e o acúmulo de riquezas pelos Estados Nacionais europeus, entre outros).

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