quinta-feira, 30 de outubro de 2008

D. JOÃO VI, UM PACATO SOBERANO

Por José de Almeida Amaral Jr*


Em época do ano como esta, há exatos dois séculos atrás, partiu de Lisboa uma esquadra portuguesa composta de aproximadamente 30 navios armados e 40 mercantes, além de 4 embarcações inglesas como reforço de escolta que, deixando o Velho Continente, rumou para o Novo Mundo, em direção à sua colônia de além-mar. Era o dia 29 de novembro de 1807. Histórica data em que a Corte lusa escapava da invasão ordenada por Napoleão Bonaparte. Resultado: nunca mais as coisas ficariam como estavam até então para estes lados do Atlântico. E, a bem da verdade, nem por lá.
Para compreendermos pouco mais o caso é importante situarmos aqui um brevíssimo cenário existente daquele período. O que motivou a estratégica retirada da família real.
Era um tempo turbulento. Em 1775 o reino britânico entrava em guerra contra sua colônia na América do Norte. Os EUA iniciaram a luta pela independência e conseguiram seu intento em 1776 tornando-se uma república presidencialista. Novos ideais iam se desenhando para o mundo. A França, por sua vez, passou em 1789 pela revolução que quatro anos depois culminaria na decapitação de Luis XVI. A burguesia chegava ao poder colocando em xeque a estabilidade da política continental, ameaçando por tabela com esse fato os demais regimes absolutistas através de suas visões iluministas e liberais. Os vizinhos, assustados, aliam-se para conter maiores ondas de mudanças. Por outro lado, as próprias características da tomada de poder interno, com vários interesses aglutinados no chamado 3º Estado – camponeses, trabalhadores urbanos e burguesia – acabaram por gerar uma intensa falta de estabilidade entre os revolucionários. Isto possibilitou a ascensão do comandante Napoleão Bonaparte, com apoio do segmento burguês, para evitar maior radicalidade no processo. Porém, o militar, por sua vez, além da ordem interna, tinha desejos de conquistas externas. E estes se chocavam contra os interesses dos ingleses, protagonistas à época de pioneira industrialização. Tensões entre as duas grandes potências refletiriam no cotidiano alheio.
Portugal naqueles idos era governado por d. Maria I, filha de d. José, falecido em 1777. Contudo, seu reinado não foi muito longo. Em 1792 constatou-se um processo doentio irreversível sobre a soberana. Ela enlouqueceu. Desta forma, foi forçado a governar, como regente, d. João, seu segundo filho, já que o primogênito José – sobre o qual foram feitos todos os investimentos para a sucessão – havia morrido em 1788. D. João tinha 24 anos e era casado há 6 com d. Carlota Joaquina de Bourbon, oito anos mais moça que ele, filha de Carlos IV da Espanha. Ele resistiu a receber o trono. Esperava a cura da mãe, que nunca veio. Somente em 1799 se convenceu definitivamente da sua posição. E, se no governo materno houve tranqüilidade, não durou muito mais a calmaria. Em 1793 uniu-se aos espanhóis para lutar contra os revolucionários republicanos na França. Alinhou a marinha portuguesa à inglesa na proteção das rotas comerciais. Em 1799 experimentou um momento de paz. Que foi breve.
No ano de 1801, Napoleão levou a Espanha para o lado francês. E convenceu aos espanhóis atacarem Portugal, aliado inglês desde o século XVIII, especialmente devido às relações comerciais. A ação franco-espanhola toma do estado português Olivença, no Alentejo. Adiante, Napoleão, desde 1804 imperador da França, expandindo seu poder exterior, volta novamente atenções para Lisboa. Exige que d. João rompa suas relações com a Inglaterra. Quer que lhe feche os portos e prenda os súditos britânicos em território luso. Deixou o monarca enrascado. Portugal era dependente da economia inglesa. Porém, sem condições de enfrentar militarmente os franceses, realizou parte do comando: fechou os portos, todavia não prendeu e nem confiscou os bens dos britânicos imigrantes. O imperador francês não tolerou o resultado e decidiu tomar providências mais sérias.
Se a situação de d. João parecia difícil, envolvido entre os interesses de ingleses e franceses, havemos de recordar também que essa circunstância ainda tinha outros ingredientes que a pioravam: o próprio casamento era algo bastante complicado. A esposa jamais deixou fraquejarem seus vínculos com a Espanha e isto fazia com que ela urdisse constantemente contra seu próprio marido, a quem detestava. Havia muita intriga palaciana. Ambiciosa, tentou assumir o mando. Em 1805 uma conspiração fracassou, envolvendo interesses franco-espanhóis e setores mais retrógrados da nação, ao tentarem colocá-la no poder. Pairava o fantasma da União Ibérica de 1580 e 1640. Ele, todavia, conseguiu se manter, mesmo que de forma insegura. Paralelamente, Napoleão definiu como agir contra o reino luso. Em setembro de 1806, mandou preparar a invasão do solo português através do gal. Junot. E assim foi feito. Outubro de 1807 as tropas francesas já estavam na fronteira da Espanha prontas para o ataque. Então, o regente teria em contrapartida que também agir. E deveria ser prontamente. Não era mais possível contemporizar, como habitualmente lidava com os problemas. O que fazer?
Durante o século XVII o pe. Antonio Vieira havia levantado uma possibilidade, defendida a seu modo também 200 anos depois pelo ministro d. Rodrigo Souza Coutinho, representante português em Turim e analista das relações internacionais. Era favorável a uma maior aproximação da Coroa para com seus súditos da América. Evitar-se-iam as perdas que os ingleses haviam passado com os EUA. Concebia um grande império luso-brasileiro, integrado e administrado de forma racional e moderna. Entretanto, não lograram viço suas intenções. D. Rodrigo perdeu o cargo em 1803 para Antonio Araújo Azevedo, um ‘francófilo’. E dessa troca adiante as condições internas na Corte passaram a ficar mais escorregadias para o baixinho e roliço d. João. Até que chegou o momento de resistir à invasão. Ou não. Afinal, enfrentar os estrangeiros não seria razoável. Assim, ganhou vulto o resgate daquela antiga idéia. Em 24/11 convocou o Conselho de Estado para tomar a difícil, mas hábil decisão: navegar era preciso. E rumo ao Brasil. E deu a importante cartada no jogo.
Em 29 de novembro de 1807, após um dia chuvoso, o príncipe d. João, d. Carlota, seus filhos, a rainha d. Maria I, vários outros parentes partiram em meio ao outono lisboeta. Do rio Tejo saíram as embarcações. Seguiram, além da família real, nobres, funcionários da Corte, ministros e políticos do Reino. Cerca de 15 mil pessoas. Os franceses ao chegarem à capital portuguesa em 30/11 ficaram a ver navios, frustrados com a não captura dos governantes lusos. Tudo o que era necessário para permanecer governando foi transportado. Insistia, entrementes, uma sensação dúbia: covardia ou esperteza? D. João estava angustiado. Seu país sendo atacado, o povo morrendo e ele seguindo viagem. Desconfortos psicológicos e físicos. Tormentas nos pensamentos e nos vagalhões dos mares que chegou a atrapalhar a travessia. Escassearam os víveres. Natal, Ano Novo e Dia de Reis se passaram. Então, a terra firme finalmente chegou. Em 22 de janeiro de 1808 os barcos atracaram na antiga primeira capital do Brasil, a ensolarada Salvador. Porém, o abatido e cheio de dúvidas d. João após 54 dias no mar pisou o solo brasileiro apenas 24 hs depois. Foi o primeiro rei europeu a fazê-lo. Revisões nos navios, um pouco de descanso. Seguiram a viagem em 26 de fevereiro. Dia 7 de março a família real chegava ao destino final, a cidade do Rio de Janeiro.
O fato representou uma grande vitória da Inglaterra. Durante o percurso se intensificaram os pedidos para o monopólio do comércio com o Brasil. D. João não estava certo dessa atitude, contudo foi convencido pelos argumentos de Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, com base em acordo assinado em 22/10/1807. Então, a 1ª carta régia, datando de 28/12/1807 foi promulgada. Ao chegar à Bahia estavam abertos os portos ‘às nações amigas’, terminando o monopólio com a metrópole lusitana. Muitos vêem aqui o início da independência do país, dentro dos quadros do sistema absolutista. A partir de então foi revogado o decreto que impedia a existência de indústrias. Fundou o governo uma escola de cirurgia na Bahia, outra no Rio de Janeiro. Nasceu um curso de economia também na capital e o Jardim Botânico, o Observatório Astronômico e a Biblioteca Pública. A tipografia também começou a trabalhar. Criou-se a Academia da Marinha e a Academia Militar. Foi fundado o Banco do Brasil. Incentivou-se o plantio de novas espécies de vegetais. Uma nova vida tomou conta da antiga colônia. Especialmente da cidade do Rio. Tornou-se sede da Monarquia e do Império. Portugal era nesse momento um simples domínio do reino. E em conflito contra os ocupantes franceses que, aliás, duraria até o ano de 1811 quando se retiraram.
Após a derrota de Napoleão a Inglaterra assumiu um papel mais poderoso no contexto europeu em nova conjuntura. Começa a pressionar contra o tráfico negreiro, que interessava à nossa economia. E, claro, os patrícios de d. João passaram a aguardar seu retorno. Como o dirigente, sempre tranqüilo, não demonstrava ânimo em partir, um mal estar ganhou terreno. Para os europeus, para o Congresso de Viena, o vivido pelo monarca era um exílio. Tinha de ser encerrado por conta das pretensões políticas lusas no contexto continental. Então, para contornar o problema, foi criado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Uma imensa significação para este lado. E um golpe para os interesses lusos que perdiam importância. D. João gostava do Rio de Janeiro, de sua paisagem e seu crescimento urbano. Aqui enterrou a mãe em 1816, casou o filho, d. Pedro, foi aclamado El-Rei d.João VI em 1818 e viveu longe de d. Carlota, para seu sossego.
Apesar de tudo isso, teria que retornar após 13 anos cariocas. A Revolução Constitucional do Porto explodiu. Depois de muito protelar e ver a revolta dos portugueses no Brasil e fora dele se ampliar, a contragosto, embarcou com d. Carlota e a Corte em abril de 1821 de volta à Europa. Abandonava o Brasil para nunca mais regressar e sentia que a independência do país vinha a caminho. Deixou, assim, em solo brasileiro, o filho regente d. Pedro para dirigir o processo. Encerrava, desta maneira, sua passagem por estes quadrantes. E levou consigo quase todo o dinheiro do Banco do Brasil. Saiu sem festas, em meio a uma situação que se complicava.
Historiadores como o pernambucano Evaldo Cabral de Mello acreditam que essa saída foi uma manobra contra-revolucionaria para conter o movimento liberal que desde a cidade do Porto em 1820 influenciava iniciativas também por aqui. Além do mais, para Mello, a corte no Brasil não fez mais do que parasitar as províncias como já fazia anteriormente em Portugal. Prova disso é que nem adaptou sua máquina administrativa a uma extensão territorial tão grande. As coisas foram ‘tocadas com a barriga’, em seu entender. Já para o mineiro José Murilo de Carvalho, da UFRJ, uma das coisas mais importantes legadas pelo período de d. João foi a extensa unidade territorial que foi preservada. Sem a presença da família Real no contexto vivido no século XIX o Brasil se fragmentaria. Não seria o que é hoje. Tornar-nos-íamos algo semelhante aos vários pequenos países da América, com cerca de 6 nações distintas. Enxergar de outra forma a importância de d. João é mera caricatura, acredita Carvalho. Também vêem que há um excesso de chacotas sobre o monarca os historiadores Lúcia Mª Bastos Neves e Guilherme Pereira das Neves, da URFJ e da UFF, respectivamente. Ele não era um homem bonito, nem de visão. Não foi um estadista de mão cheia, com intenções de ‘grandes proezas militares e administrativas’. Porém revelou bom caráter e praticidade ao governar. Está longe da figura patética comedora de frangos apresentada em filme recentemente. Para o clássico Caio Prado Jr. a vinda da Corte singulariza o processo de independência do país no contexto americano. Enquanto para os demais isto se dá no campo de batalha, para nós o próprio governo metropolitano vai lançar as bases da autonomia da ex-colônia. Não se pode computar o tempo vivido aqui pela nobreza lusa como sendo parte do chamado ‘período colonial’, afirma Prado Jr. Rui Ramos, historiador português da Universidade de Lisboa e de Oxford afirma a importância da família real decidir partir. Portugal era pedaço de uma monarquia e não um ‘Estado-nação’. Por isso a correta opção em preservar a nobreza e deslocar seu governo de território.
D. João VI chega a Lisboa com toda a família real - excetuando-se Pedro - mais 4 mil pessoas e prestes a completar 54 anos de vida. Dona Carlota ao pisar no porto raspa os sapatos para ‘não levar terra do Brasil neles’. Daquele lado do Atlântico, d. João VI vê confirmar as perspectivas da independência brasileira. Portugal se opõe ao processo por conta da imagem frente aos demais governos: perda de um território tão grande e, ainda mais, comandado por um herdeiro do trono português. A Inglaterra, aliada dos portugueses, preserva os bons laços com o Brasil e apóia o processo. Deste modo, a Independência se efetiva em 1822, intermediada pelo Império Britânico. O Brasil paga 2 milhões de libras como indenização a Lisboa e d. Pedro I – em Portugal, Pedro IV – permanece mantendo a condição de herdeiro da Coroa lusa. Além deste desgaste, novamente em sua pátria d.João VI teve que reviver maus momentos do passado, com d. Carlota gerando intrigas palacianas, conspirando a favor do caçula e preferido d. Miguel, um extremo absolutista. Tentam um golpe em 1824. Doente e cansado d. João VI morre em 1826 aos 59 anos. Portugal está um caos, em eminente guerra civil. O Brasil, enquanto instala sua primeira Assembléia Geral, vê o Uruguai iniciar sua luta pela independência no sul país.
Efemérides como estas são importantes para fazermos reflexões a cerca de nossa história: o que aconteceu até aqui para chegarmos às condições vividas atualmente? E, além disso, como não repetir os erros do passado para a construção de um futuro melhor. De qualquer modo, aquela decisão de d.João zarpar com a família real de Lisboa em 29 de novembro de 1807 não resultou certamente em um bucólico convescote em jardins tropicais.
10/12/2007

* José de Almeida Amaral Jr, professor universitário em Ciências Sociais. Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação. Colunista do Jornal Cantareira, colunista pela Pascom na Rádio 9 de Julho Am 1600 Khz e colaborador do Jornal Mundo Lusíada na Web. Clique aqui para entrar em contato.

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